quarta-feira, 6 de março de 2013

Entrada1


Trabalho num bar, na rua Nova do Carvalho no Caís do Sodré. Rua que em tempos foi exclusivamente frequentada por aqueles que as pessoas ditas normais gostam de chamar a escumalha da sociedade: prostitutas, bêbados, gente sem emprego que pede na rua ou vende aquilo que tem por uma côdea de pão. Nessa rua existem as chamadas boates, bares, restaurantes e discotecas. Claro está que algumas dessas boates menos dignas ao mortal comum, tentam bem disfarçar a origem do seu nascimento. Umas conseguem, outras não.  Ainda hoje nessa rua existem esse tipo de pessoas, que misturadas coma sociedade normal vão passando despercebidas. Mas que aos olhos daqueles que ali passam todos os dias, já são caras familiares.
Na cena 8 desta peça existe uma personagem sem nome, á qual o autor, agora sem nome também por mim definido, decidiu intitular de Puta. Eu sou a Puta. Não posso fazer esta personagem, sem antes pensar o que significa a prostituição para mim. Coisa que ainda hoje não sei explicar. Desde que comecei a trabalhar nesse bar, que não é uma boate, que conviver com a prostituição do outro lado da rua passou a ser uma coisa habitual. O que me fez pensar. Ver aquelas mulheres pedirem-me um café como se fossem mulheres que têm um emprego normal. Como se não fossem pessoas que estivessem todo dia a vender a sua dignidade. Estaria a mentir se dissesse que ainda hoje, depois de trabalhar lá há seis meses, vê-las naquela rua não me incomoda. Nem sei bem dizer o que realmente é incomodativo, penso que é só essa ideia de vender algo tão próprio como o corpo. É impossível ignorar que algumas delas têm a idade da minha mãe, outras  da minha avó, e outras a minha. Não sei dizer se me faz mais impressão ver a D. Augusta consciente do seu trabalho encostada á esquina, ou a D. Teresa que no meio daquela vida toda já perdeu o respeito próprio de tal forma que já nem mostra pudor.
Todas elas, bonitas ou feias, velhas ou novas, têm um olhar sujo, uma cara carregada, como se vivessem depois de se terem morto a si próprias. Nunca tive coragem de falar a nenhuma, consciente de saber o que elas eram. Apesar da minha curiosidade um tanto preconceituosa, admito-o, nunca tive coragem de perguntar o porquê daquela vida. Porquê viver assim e não tentar assaltar um banco, ou raptar alguém por um resgate.
                Um dia numa pausa do trabalho dei por mim a partilhar esquinas opostas com uma delas. Não pude ignorar as suas calças eram vermelhas, exactamente da cor das minhas, que ela fumava um cigarro, tal como eu, que tinha a minha idade. E que se trocasse de esquina comigo, provavelmente seria ela a trabalhadora séria, que estava a fumar um cigarro na pausa do trabalho. Não pude deixar de reparar na beleza dela. Era realmente bonita. Ela reparou em mim. Eu esbocei um sorriso. Não consigo adivinhar o que foi no pensamento dela. Nunca troquei uma palavra com ela. Sei quem ela é, e ela sabe quem eu sou. Sei que se ela fosse posta numa baixa com uns livros na mão e se não tivesse aquele andar redondo próprio do que faz, poderia ser facilmente confundida com uma estudante qualquer da universidade católica. Curioso. A partir desse dia deixei de ser condescendente, apesar de nunca o ter sido perante elas. Não é fácil ser mulher e ver isto. Não é fácil passar naquela rua para ir trabalhar e ver que ali estão seres que partilham a condição de mulher comigo. Que já passaram por uma puberdade, que já passaram pelas mesma duvidas físicas que eu. Sempre em condições diferentes. Por vezes, quando uma ou outra, principalmente as mais velhas me aparecem a pedir um café, não sei bem como lhes falar. Não parecem humanas. Não parecem pessoas. Mas também não parecem nenhum ser sobrenatural. Não é mau, nem é bom, é simplesmente assim. Já não me dá pena. E a curiosidade acaba por se calar perante o medo de magoar quem se nota que já foi magoado.
Essa rapariga, a das calças vermelhas, vejo-a muitas vezes. A última vez, ia ao lado de homem que aparentava ter idade para ser pai dela. Ela apontava-lhe o caminho do multibanco. Atravessamos a mesma rua, mais uma vez em sentidos opostos e cruzamos olhares. Eu não sei como um homem a aborda. Como é que age numa situação dessas. Não consigo ver realidade naquelas frases cliché. Aquilo é real demais para ser cliché.
Um dia, antes de estrear, espero ter a coragem e inteligência para saber escolher as palavras e conhecer a vida de uma delas. Até lá, vou baixando a cabeça, desviando o olhar e tentar ignorar que noutra condição poderia ser eu na esquina oposta.

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