Trabalho num bar, na rua Nova do
Carvalho no Caís do Sodré. Rua que em tempos foi exclusivamente frequentada por
aqueles que as pessoas ditas normais gostam de chamar a escumalha da sociedade:
prostitutas, bêbados, gente sem emprego que pede na rua ou vende aquilo que tem
por uma côdea de pão. Nessa rua existem as chamadas boates, bares, restaurantes
e discotecas. Claro está que algumas dessas boates menos dignas ao mortal
comum, tentam bem disfarçar a origem do seu nascimento. Umas conseguem, outras
não. Ainda hoje nessa rua existem esse
tipo de pessoas, que misturadas coma sociedade normal vão passando
despercebidas. Mas que aos olhos daqueles que ali passam todos os dias, já são
caras familiares.
Na cena 8 desta peça existe uma
personagem sem nome, á qual o autor, agora sem nome também por mim definido,
decidiu intitular de Puta. Eu sou a Puta. Não posso fazer esta personagem, sem
antes pensar o que significa a prostituição para mim. Coisa que ainda hoje não
sei explicar. Desde que comecei a trabalhar nesse bar, que não é uma boate, que
conviver com a prostituição do outro lado da rua passou a ser uma coisa
habitual. O que me fez pensar. Ver aquelas mulheres pedirem-me um café como se
fossem mulheres que têm um emprego normal. Como se não fossem pessoas que
estivessem todo dia a vender a sua dignidade. Estaria a mentir se dissesse que
ainda hoje, depois de trabalhar lá há seis meses, vê-las naquela rua não me
incomoda. Nem sei bem dizer o que realmente é incomodativo, penso que é só essa
ideia de vender algo tão próprio como o corpo. É impossível ignorar que algumas
delas têm a idade da minha mãe, outras da minha avó, e outras a minha. Não sei dizer
se me faz mais impressão ver a D. Augusta consciente do seu trabalho encostada
á esquina, ou a D. Teresa que no meio daquela vida toda já perdeu o respeito
próprio de tal forma que já nem mostra pudor.
Todas elas, bonitas ou feias, velhas
ou novas, têm um olhar sujo, uma cara carregada, como se vivessem depois de se
terem morto a si próprias. Nunca tive coragem de falar a nenhuma, consciente de
saber o que elas eram. Apesar da minha curiosidade um tanto preconceituosa,
admito-o, nunca tive coragem de perguntar o porquê daquela vida. Porquê viver
assim e não tentar assaltar um banco, ou raptar alguém por um resgate.
Um
dia numa pausa do trabalho dei por mim a partilhar esquinas opostas com uma
delas. Não pude ignorar as suas calças eram vermelhas, exactamente da cor das
minhas, que ela fumava um cigarro, tal como eu, que tinha a minha idade. E que
se trocasse de esquina comigo, provavelmente seria ela a trabalhadora séria,
que estava a fumar um cigarro na pausa do trabalho. Não pude deixar de reparar
na beleza dela. Era realmente bonita. Ela reparou em mim. Eu esbocei um sorriso.
Não consigo adivinhar o que foi no pensamento dela. Nunca troquei uma palavra
com ela. Sei quem ela é, e ela sabe quem eu sou. Sei que se ela fosse posta
numa baixa com uns livros na mão e se não tivesse aquele andar redondo próprio
do que faz, poderia ser facilmente confundida com uma estudante qualquer da
universidade católica. Curioso. A partir desse dia deixei de ser
condescendente, apesar de nunca o ter sido perante elas. Não é fácil ser mulher
e ver isto. Não é fácil passar naquela rua para ir trabalhar e ver que ali
estão seres que partilham a condição de mulher comigo. Que já passaram por uma
puberdade, que já passaram pelas mesma duvidas físicas que eu. Sempre em
condições diferentes. Por vezes, quando uma ou outra, principalmente as mais velhas
me aparecem a pedir um café, não sei bem como lhes falar. Não parecem humanas.
Não parecem pessoas. Mas também não parecem nenhum ser sobrenatural. Não é mau,
nem é bom, é simplesmente assim. Já não me dá pena. E a curiosidade acaba por
se calar perante o medo de magoar quem se nota que já foi magoado.
Essa rapariga, a das calças
vermelhas, vejo-a muitas vezes. A última vez, ia ao lado de homem que
aparentava ter idade para ser pai dela. Ela apontava-lhe o caminho do
multibanco. Atravessamos a mesma rua, mais uma vez em sentidos opostos e
cruzamos olhares. Eu não sei como um homem a aborda. Como é que age numa
situação dessas. Não consigo ver realidade naquelas frases cliché. Aquilo é
real demais para ser cliché.
Um dia, antes de estrear, espero ter a coragem e
inteligência para saber escolher as palavras e conhecer a vida de uma delas.
Até lá, vou baixando a cabeça, desviando o olhar e tentar ignorar que noutra
condição poderia ser eu na esquina oposta.
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