sábado, 2 de março de 2013

Cenas de uma Vida I

Falaste com a mãe ontem?
Nao.
E tu ?
Também não.
Se calhar morreu.
Cala-te Carl.
A sério, se calhar morreu. Ontem li uma noticia no jornal. Uma senhora morta em casa há mais de um mês.
Ninguem se apercebeu? A familia?
Não. "Era demasiado independente, achamos só que não quis dizer onde tinha ido." Disseram eles.
Isso são desculpas, para não parecerem maus filhos.
Não. Não eram filhos. Sobrinhos e enteados.
Se calhar foi por isso que não perceberam que ela estava morta.
Acho que se a mãe morresse, eu ia saber. Tenho a certeza. Ia senti-lo. A alma da nossa mãe não abandona o seu corpo sem nós darmos conta. Não nunca. Ela não deixaria.
Sim. É ruim demais.
Cala-te. Só dizes merdas tu. Depois um dia acontece e quero ver se o teu humor continua.
Queres que te diga o quê? Que não seria um fardo a menos? Estaria a mentir. A nossa mãe já não nos ama, já nem sabe quem somos. Nunca o soube. Esteve sempre mais entretida com outras coisas que para nós são meras trivialidades.
Estás a abusar.
Estou a abusar? O que é tu sabes disso? Não estiveste presente em metade dos anos. Atingiste a marioridade e lá foste tu, estrada fora conhecer o mundo. Valeu-te de muito realmente. És muito melhor pessoa agora depois de teres andado a lamber conas internacionais. Sonhavas em ser um hippie. Não sabes o que foi aturá-la. Vê-la todos os dias amar alguém mais do que te ama a ti.
Não fales do que não sabes.
Por tanto esse é o teu problema? Falta de amor materno? 
Não. O meu problema são vocês a santificarem a mãe por pena. Pena? Que merda é essa? Parece que não te lembras de apanhar vómito do chão. Parece que não assististe a rotina do beber, cair, bater e levantar. Não sejas hipócrita. Foi uma merda de mãe em vida e agora porque está senil já é santa. Nem quero saber quantas missas lhe vais rezar depois de morta. 
Pára de dizer isso. Ser mãe não é fácil. Há sempre coisas que para os filhos lhe parecem mal, erradas. 
Ai sim? Que sabes tu disso?
Fui tua mãe durante toda a tua existência. Fui tua mãe e mãe dela. Fui mãe antes de ser filha.
Vocês estão muito dramáticos.
Pa, tu vai mas é lamber conas internacionais, que é o que fazes de melhor. Foi-te tão fácil abandonar o barco quando percebeste que ia dar trabalho. Tinhas tudo para ter uma vida a sério mas preferiste por-te na alheta. Deixaste-me sózinha. Tu, o mais velho. Aquele que tinha a responsabilidade.
Responsabilidade? Não era minha responsabilidade mudar-te as fraldas, ou acalentar-te quando tinhas pesadelos. Não quis ser como tu foste, podes culpar-me? Não quis ser pai antes de ser filho. Nem quis levar-te comigo. Sim, quis lamber conas. Era só isso que eu queria. Não fugi de nada. Descobri que estava farto e fui embora. Não tenho a culpa que não tenhas feito o mesmo. Julgas-te perfeita porque ficaste? O que é que isso criou? O Carl? Nem consegue almoçar sózinho, tem vinte anos e precisa que o acordes para ir para a faculdade. Nem conseguiu a independência do despertador!
Não fales de mim. Tu não me conheces. És só um estranho que decidiu voltar para casa a dizer que é meu irmão.


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