quinta-feira, 22 de maio de 2014

O cobertor

Recordo o dia em que me pediste abrigo, como se soubesses que eu seria unica pessoa a da-lo sem pedir amor em troca. Juraste-me amor eterno. Nunca quis realmente pensar muito nisso. Não faz arte de mim. Não é quem eu sou. Mas pensei. Acreditei no sonho que me depositaste nas mãos e fingi que era meu. Entrei nesse universo. Quis amar. Quis dar a minha vida. No momento em que cruzei a linha de chegada, não estiveste lá. Voltas-te ao inicio. Pediste-me que voltasse a ser  o que era dantes. Que te devolvesse o sonho. Lembro-me do dia em que julgaste que eu era um cobertor. Do dia em quiseste que fosse boa contigo. Recordo-me disso com carinho, sem repulsa. Mas deixa-me ansiosa e angustiada, porque a seguir a essa doce memória logo aparece a outra a seguir. Aquela em que me arrancas um pedaço da alma e o levas contigo, como se te pertencesse. Se calhar, pertence. Se calhar, é teu. Agora já não o quero. Reconstruí o buraco que ficou e parece que já não sou a mesma. Não sinto da mesma forma, não vejo, oiço ou amo da mesma forma. Sempre quiseste ser eu. E sempre quiseste que eu fosse tu. Agora já nem sei o que isso significa. Renovo-me. E cada vez que penso em ti, vejo-me de fora. Vejo-me de longe, como se fosse noutra encarnação, noutra vida, noutro estágio. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

O Habitante

Descobri um habitante que vive dentro de mim. Está constantemente a empurrar-me contra o chão, como se me quisesse afundar. Esta força constante faz-me ver tudo com mais clareza e calma. Redescubro as ruas por onde passo. Apercebo-me que na realidade, nunca passei verdadeiramente por elas. Crio um universo paralelo e descubro o que o tempo pode parar sempre que eu queira. Sinto-me com super poderes. Poderes que não me elevam , apenas me diferenciam. Me distinguem e ao mesmo tempo me isolam. Sinto a individualidade a tomar conta de mim, e mesmo assim não sinto medo da solidão. Se o que é real é aquilo em que eu quero acreditar, quem me diz que os limites da minha imaginação não definem a minha realidade?

domingo, 6 de abril de 2014

Haja que houver.

Aqui nos encontramos de novo nesta esquina. A esquina que nos separou e que fez com que nada pudesse voltar a ser igual. Hoje mais adulta. Mais mulher. E tu, mais ciente. Mais seguro e contido. Os nossos caminhos serão sempre assim, cruzados por esquina que separa, que dá consciência. Carrego-te comigo. Estou aqui. E tu ai. De alguma forma que não sei por em palavras. Estamos juntos.

domingo, 23 de março de 2014

o unico substituto para o amor é a memória.

Mantenho o simples. O que nos liga é algo mais do que aquilo que construímos. Se estás aqui eu não consigo não estar aqui também.

Assim.

Passou-se um ano. Não houve corpo, não houve borbulhar do meu sangue no teu. Aprendi a indiferença. O tempo ensinou-me a ser louca, não sendo. Agora estou curiosa. Estou superior, estou sozinha. Cada vez mais sozinha, e ao mesmo tempo com mais gente á minha volta. Ao mesmo tempo, mais doente, infectada. Enquanto tento limpar a lama que existe á minha volta, mais vejo a luz. Aquela que devo seguir num caminho solitário e recompensador. Agora sou sozinha, fechada e feliz. Descobri a verdadeira introspeção. Descobri quem eu sou sozinha sem ninguém a minha volta que me faça querer depender. Amo-me. Assim. Só.

quarta-feira, 6 de março de 2013

até rebentar as artérias

quero falar sem correr o risco de ser mal compreendida. quero mandar te a merda por teres o dobro da oportunidade que eu tenho. está a ficar cada vez mais difícil controlar a raiva dentro do meu corpo. Não matar. Está cada vez mais difícil afastar-me do meu lado animal. Respeito. Destino. São duas coisas que não ligam uma com a outra. Porque é que eu não posso ter tudo  aquilo que toda a gente tem? Estou a perder o que faz de mim. A minha matéria esta a evaporar-se, e eu não consigo controla-la. Estou cansada de merecer sempre menos. O mundo é uma sanita, e as pessoas a merda que bóia sem papel. Quero ver sangue. Apetece-me ver sangue sair do corpo dos monstros que me rodeiam até sentir os seus corpos ficarem frios. Gelados. Sinto-me macabra ao ponto desta imagem me dar vontade de rir. Quero rir-me com a tua morte. Quero sugar todo o ar desses pulmões. Quero aspirar todo o sangue dessas veias. Fazer explodir esses órgãos. Espalhar tudo como um cocktail de mágoa. Quero ver as vossas entranhas expostas como estão expostos os meus sentimentos. Violaram a minha noção de arte. Violaram a sensibilidade que havia em mim. Agora só violência. Cheguei ao ponto sem retorno. Aceito o meu destino sangrento. Abraço-o e defendo-o de todas as morais que me fizeram chegar a ele. Morram todos. Enterrem-me numa ilha deserta. Não me deixei á solta. 

Entrada1


Trabalho num bar, na rua Nova do Carvalho no Caís do Sodré. Rua que em tempos foi exclusivamente frequentada por aqueles que as pessoas ditas normais gostam de chamar a escumalha da sociedade: prostitutas, bêbados, gente sem emprego que pede na rua ou vende aquilo que tem por uma côdea de pão. Nessa rua existem as chamadas boates, bares, restaurantes e discotecas. Claro está que algumas dessas boates menos dignas ao mortal comum, tentam bem disfarçar a origem do seu nascimento. Umas conseguem, outras não.  Ainda hoje nessa rua existem esse tipo de pessoas, que misturadas coma sociedade normal vão passando despercebidas. Mas que aos olhos daqueles que ali passam todos os dias, já são caras familiares.
Na cena 8 desta peça existe uma personagem sem nome, á qual o autor, agora sem nome também por mim definido, decidiu intitular de Puta. Eu sou a Puta. Não posso fazer esta personagem, sem antes pensar o que significa a prostituição para mim. Coisa que ainda hoje não sei explicar. Desde que comecei a trabalhar nesse bar, que não é uma boate, que conviver com a prostituição do outro lado da rua passou a ser uma coisa habitual. O que me fez pensar. Ver aquelas mulheres pedirem-me um café como se fossem mulheres que têm um emprego normal. Como se não fossem pessoas que estivessem todo dia a vender a sua dignidade. Estaria a mentir se dissesse que ainda hoje, depois de trabalhar lá há seis meses, vê-las naquela rua não me incomoda. Nem sei bem dizer o que realmente é incomodativo, penso que é só essa ideia de vender algo tão próprio como o corpo. É impossível ignorar que algumas delas têm a idade da minha mãe, outras  da minha avó, e outras a minha. Não sei dizer se me faz mais impressão ver a D. Augusta consciente do seu trabalho encostada á esquina, ou a D. Teresa que no meio daquela vida toda já perdeu o respeito próprio de tal forma que já nem mostra pudor.
Todas elas, bonitas ou feias, velhas ou novas, têm um olhar sujo, uma cara carregada, como se vivessem depois de se terem morto a si próprias. Nunca tive coragem de falar a nenhuma, consciente de saber o que elas eram. Apesar da minha curiosidade um tanto preconceituosa, admito-o, nunca tive coragem de perguntar o porquê daquela vida. Porquê viver assim e não tentar assaltar um banco, ou raptar alguém por um resgate.
                Um dia numa pausa do trabalho dei por mim a partilhar esquinas opostas com uma delas. Não pude ignorar as suas calças eram vermelhas, exactamente da cor das minhas, que ela fumava um cigarro, tal como eu, que tinha a minha idade. E que se trocasse de esquina comigo, provavelmente seria ela a trabalhadora séria, que estava a fumar um cigarro na pausa do trabalho. Não pude deixar de reparar na beleza dela. Era realmente bonita. Ela reparou em mim. Eu esbocei um sorriso. Não consigo adivinhar o que foi no pensamento dela. Nunca troquei uma palavra com ela. Sei quem ela é, e ela sabe quem eu sou. Sei que se ela fosse posta numa baixa com uns livros na mão e se não tivesse aquele andar redondo próprio do que faz, poderia ser facilmente confundida com uma estudante qualquer da universidade católica. Curioso. A partir desse dia deixei de ser condescendente, apesar de nunca o ter sido perante elas. Não é fácil ser mulher e ver isto. Não é fácil passar naquela rua para ir trabalhar e ver que ali estão seres que partilham a condição de mulher comigo. Que já passaram por uma puberdade, que já passaram pelas mesma duvidas físicas que eu. Sempre em condições diferentes. Por vezes, quando uma ou outra, principalmente as mais velhas me aparecem a pedir um café, não sei bem como lhes falar. Não parecem humanas. Não parecem pessoas. Mas também não parecem nenhum ser sobrenatural. Não é mau, nem é bom, é simplesmente assim. Já não me dá pena. E a curiosidade acaba por se calar perante o medo de magoar quem se nota que já foi magoado.
Essa rapariga, a das calças vermelhas, vejo-a muitas vezes. A última vez, ia ao lado de homem que aparentava ter idade para ser pai dela. Ela apontava-lhe o caminho do multibanco. Atravessamos a mesma rua, mais uma vez em sentidos opostos e cruzamos olhares. Eu não sei como um homem a aborda. Como é que age numa situação dessas. Não consigo ver realidade naquelas frases cliché. Aquilo é real demais para ser cliché.
Um dia, antes de estrear, espero ter a coragem e inteligência para saber escolher as palavras e conhecer a vida de uma delas. Até lá, vou baixando a cabeça, desviando o olhar e tentar ignorar que noutra condição poderia ser eu na esquina oposta.