quarta-feira, 6 de março de 2013

até rebentar as artérias

quero falar sem correr o risco de ser mal compreendida. quero mandar te a merda por teres o dobro da oportunidade que eu tenho. está a ficar cada vez mais difícil controlar a raiva dentro do meu corpo. Não matar. Está cada vez mais difícil afastar-me do meu lado animal. Respeito. Destino. São duas coisas que não ligam uma com a outra. Porque é que eu não posso ter tudo  aquilo que toda a gente tem? Estou a perder o que faz de mim. A minha matéria esta a evaporar-se, e eu não consigo controla-la. Estou cansada de merecer sempre menos. O mundo é uma sanita, e as pessoas a merda que bóia sem papel. Quero ver sangue. Apetece-me ver sangue sair do corpo dos monstros que me rodeiam até sentir os seus corpos ficarem frios. Gelados. Sinto-me macabra ao ponto desta imagem me dar vontade de rir. Quero rir-me com a tua morte. Quero sugar todo o ar desses pulmões. Quero aspirar todo o sangue dessas veias. Fazer explodir esses órgãos. Espalhar tudo como um cocktail de mágoa. Quero ver as vossas entranhas expostas como estão expostos os meus sentimentos. Violaram a minha noção de arte. Violaram a sensibilidade que havia em mim. Agora só violência. Cheguei ao ponto sem retorno. Aceito o meu destino sangrento. Abraço-o e defendo-o de todas as morais que me fizeram chegar a ele. Morram todos. Enterrem-me numa ilha deserta. Não me deixei á solta. 

Entrada1


Trabalho num bar, na rua Nova do Carvalho no Caís do Sodré. Rua que em tempos foi exclusivamente frequentada por aqueles que as pessoas ditas normais gostam de chamar a escumalha da sociedade: prostitutas, bêbados, gente sem emprego que pede na rua ou vende aquilo que tem por uma côdea de pão. Nessa rua existem as chamadas boates, bares, restaurantes e discotecas. Claro está que algumas dessas boates menos dignas ao mortal comum, tentam bem disfarçar a origem do seu nascimento. Umas conseguem, outras não.  Ainda hoje nessa rua existem esse tipo de pessoas, que misturadas coma sociedade normal vão passando despercebidas. Mas que aos olhos daqueles que ali passam todos os dias, já são caras familiares.
Na cena 8 desta peça existe uma personagem sem nome, á qual o autor, agora sem nome também por mim definido, decidiu intitular de Puta. Eu sou a Puta. Não posso fazer esta personagem, sem antes pensar o que significa a prostituição para mim. Coisa que ainda hoje não sei explicar. Desde que comecei a trabalhar nesse bar, que não é uma boate, que conviver com a prostituição do outro lado da rua passou a ser uma coisa habitual. O que me fez pensar. Ver aquelas mulheres pedirem-me um café como se fossem mulheres que têm um emprego normal. Como se não fossem pessoas que estivessem todo dia a vender a sua dignidade. Estaria a mentir se dissesse que ainda hoje, depois de trabalhar lá há seis meses, vê-las naquela rua não me incomoda. Nem sei bem dizer o que realmente é incomodativo, penso que é só essa ideia de vender algo tão próprio como o corpo. É impossível ignorar que algumas delas têm a idade da minha mãe, outras  da minha avó, e outras a minha. Não sei dizer se me faz mais impressão ver a D. Augusta consciente do seu trabalho encostada á esquina, ou a D. Teresa que no meio daquela vida toda já perdeu o respeito próprio de tal forma que já nem mostra pudor.
Todas elas, bonitas ou feias, velhas ou novas, têm um olhar sujo, uma cara carregada, como se vivessem depois de se terem morto a si próprias. Nunca tive coragem de falar a nenhuma, consciente de saber o que elas eram. Apesar da minha curiosidade um tanto preconceituosa, admito-o, nunca tive coragem de perguntar o porquê daquela vida. Porquê viver assim e não tentar assaltar um banco, ou raptar alguém por um resgate.
                Um dia numa pausa do trabalho dei por mim a partilhar esquinas opostas com uma delas. Não pude ignorar as suas calças eram vermelhas, exactamente da cor das minhas, que ela fumava um cigarro, tal como eu, que tinha a minha idade. E que se trocasse de esquina comigo, provavelmente seria ela a trabalhadora séria, que estava a fumar um cigarro na pausa do trabalho. Não pude deixar de reparar na beleza dela. Era realmente bonita. Ela reparou em mim. Eu esbocei um sorriso. Não consigo adivinhar o que foi no pensamento dela. Nunca troquei uma palavra com ela. Sei quem ela é, e ela sabe quem eu sou. Sei que se ela fosse posta numa baixa com uns livros na mão e se não tivesse aquele andar redondo próprio do que faz, poderia ser facilmente confundida com uma estudante qualquer da universidade católica. Curioso. A partir desse dia deixei de ser condescendente, apesar de nunca o ter sido perante elas. Não é fácil ser mulher e ver isto. Não é fácil passar naquela rua para ir trabalhar e ver que ali estão seres que partilham a condição de mulher comigo. Que já passaram por uma puberdade, que já passaram pelas mesma duvidas físicas que eu. Sempre em condições diferentes. Por vezes, quando uma ou outra, principalmente as mais velhas me aparecem a pedir um café, não sei bem como lhes falar. Não parecem humanas. Não parecem pessoas. Mas também não parecem nenhum ser sobrenatural. Não é mau, nem é bom, é simplesmente assim. Já não me dá pena. E a curiosidade acaba por se calar perante o medo de magoar quem se nota que já foi magoado.
Essa rapariga, a das calças vermelhas, vejo-a muitas vezes. A última vez, ia ao lado de homem que aparentava ter idade para ser pai dela. Ela apontava-lhe o caminho do multibanco. Atravessamos a mesma rua, mais uma vez em sentidos opostos e cruzamos olhares. Eu não sei como um homem a aborda. Como é que age numa situação dessas. Não consigo ver realidade naquelas frases cliché. Aquilo é real demais para ser cliché.
Um dia, antes de estrear, espero ter a coragem e inteligência para saber escolher as palavras e conhecer a vida de uma delas. Até lá, vou baixando a cabeça, desviando o olhar e tentar ignorar que noutra condição poderia ser eu na esquina oposta.

sábado, 2 de março de 2013

Cenas de uma Vida I

Falaste com a mãe ontem?
Nao.
E tu ?
Também não.
Se calhar morreu.
Cala-te Carl.
A sério, se calhar morreu. Ontem li uma noticia no jornal. Uma senhora morta em casa há mais de um mês.
Ninguem se apercebeu? A familia?
Não. "Era demasiado independente, achamos só que não quis dizer onde tinha ido." Disseram eles.
Isso são desculpas, para não parecerem maus filhos.
Não. Não eram filhos. Sobrinhos e enteados.
Se calhar foi por isso que não perceberam que ela estava morta.
Acho que se a mãe morresse, eu ia saber. Tenho a certeza. Ia senti-lo. A alma da nossa mãe não abandona o seu corpo sem nós darmos conta. Não nunca. Ela não deixaria.
Sim. É ruim demais.
Cala-te. Só dizes merdas tu. Depois um dia acontece e quero ver se o teu humor continua.
Queres que te diga o quê? Que não seria um fardo a menos? Estaria a mentir. A nossa mãe já não nos ama, já nem sabe quem somos. Nunca o soube. Esteve sempre mais entretida com outras coisas que para nós são meras trivialidades.
Estás a abusar.
Estou a abusar? O que é tu sabes disso? Não estiveste presente em metade dos anos. Atingiste a marioridade e lá foste tu, estrada fora conhecer o mundo. Valeu-te de muito realmente. És muito melhor pessoa agora depois de teres andado a lamber conas internacionais. Sonhavas em ser um hippie. Não sabes o que foi aturá-la. Vê-la todos os dias amar alguém mais do que te ama a ti.
Não fales do que não sabes.
Por tanto esse é o teu problema? Falta de amor materno? 
Não. O meu problema são vocês a santificarem a mãe por pena. Pena? Que merda é essa? Parece que não te lembras de apanhar vómito do chão. Parece que não assististe a rotina do beber, cair, bater e levantar. Não sejas hipócrita. Foi uma merda de mãe em vida e agora porque está senil já é santa. Nem quero saber quantas missas lhe vais rezar depois de morta. 
Pára de dizer isso. Ser mãe não é fácil. Há sempre coisas que para os filhos lhe parecem mal, erradas. 
Ai sim? Que sabes tu disso?
Fui tua mãe durante toda a tua existência. Fui tua mãe e mãe dela. Fui mãe antes de ser filha.
Vocês estão muito dramáticos.
Pa, tu vai mas é lamber conas internacionais, que é o que fazes de melhor. Foi-te tão fácil abandonar o barco quando percebeste que ia dar trabalho. Tinhas tudo para ter uma vida a sério mas preferiste por-te na alheta. Deixaste-me sózinha. Tu, o mais velho. Aquele que tinha a responsabilidade.
Responsabilidade? Não era minha responsabilidade mudar-te as fraldas, ou acalentar-te quando tinhas pesadelos. Não quis ser como tu foste, podes culpar-me? Não quis ser pai antes de ser filho. Nem quis levar-te comigo. Sim, quis lamber conas. Era só isso que eu queria. Não fugi de nada. Descobri que estava farto e fui embora. Não tenho a culpa que não tenhas feito o mesmo. Julgas-te perfeita porque ficaste? O que é que isso criou? O Carl? Nem consegue almoçar sózinho, tem vinte anos e precisa que o acordes para ir para a faculdade. Nem conseguiu a independência do despertador!
Não fales de mim. Tu não me conheces. És só um estranho que decidiu voltar para casa a dizer que é meu irmão.