quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

20 de Setembro

O meu nome é Amélia. Sou de Santarém., mas vivo em cascais, com o meu marido. Casei muito nova. Apesar de ser quase licenciada, nunca exerci a minha profissão. Casei-me e deixei os estudos passado um ano. Nunca passei necessidades económicas, por isso dediquei a minha vida á família. O meu marido chama-se Gabriel. Trabalha na política. Nem sei dizer ao certo o que ele faz. Sei que saí cedo de casa, e chega tarde. Que detém nele todo o poder económico da família. Pertencemos a uma classe alta. Somos muito bem vistos na sociedade. Sem sonhos ou realizações pessoais, eu acordo todos os dias, e visto-me para ir para o sofá da minha sala, dar ordens ao mordomo para que nada falhe na vida dos outros. Tomar conta da minha casa e da minha família, deu conta de toda a minha vida. O meu casamento sempre foi feliz, eu não me dignava a desautorizar as decisões do Gabriel. Tal como todos os casamentos, o nosso não escapou à regra, e foi decaindo com a passagem do tempo. Já não estamos apaixonados, mas o divórcio está fora de questão. Perante esta vida a única coisa que me fazia totalmente feliz, era o meu filho, Duarte. Simplesmente porque foi a única coisa que eu consegui ter. Como uma obra-prima só minha. Quis que ele tivesse tudo. Mimei-o em todos os anos da sua vida, excepto naqueles em que ele mais precisou de mim. Foi o meu único filho. O Duarte sempre foi um rapaz bonito, muito bonito. Sempre teve muitas namoradas, e nunca teve problemas em traze-las lá a casa. Tinha com ele, uma óptima relação, nunca nos zangávamos e ele confidenciava-me muitos dos seus segredos. A partir de uma certa idade, o Duarte começou a tratar-me mal. Parecia que não gostava mais de mim, eu pensei que tivesse a ver com a adolescência. O Duarte começou a ficar cada vez mais distante. No último dia de aulas houve um baile de gala, para encerrar o ano escolar. O Duarte tinha dezoito anos. Apareceu em casa, muito revoltado. Ele havia me falado no baile, e por isso eu perguntei lhe se iria. E ele disse me que não. Que não queria ver mais nenhum dos seus amigos. Eu não percebi. Começou a chorar agarrado a mim. Dizia que já não se conhecia, que não sabia quem era. Não soube o que fazer. Não percebia o que ele queria dizer com tudo aquilo. Nunca tinha visto nos seus olhos um desgosto tão grande. Disse me que queria fugir dali, e que nunca mais sairia à rua. E assim fez durante dias e dias. Fiquei tão preocupada que passados dois dias de refúgio do Duarte, decidi ir à escola e procurar alguem que me dissesse o que se passava com o meu menino. Falei com todos os seus amigos e ninguém me soube responder. Falei com professores e todos me disseram que Duarte era um rapaz exemplar e que não tinha reparado em nenhuma alteração no seu comportamento. Quando estava a sair da escola um rapaz veio ter comigo, eu não o conhecia. Pediu-me que entregasse ao Duarte uma carta. Pensei mil vezes antes de o fazer, mas eu sou mãe. E aquela era a única forma de ajudar o meu menino. A carta era do rapaz que ma tinha entregado, pedia desculpas ao Duarte. Estavam apaixonados. Fiquei apavorada. O meu marido é um político de renome, e não sabia o que fazer. Selei o envelope e entreguei a carta ao Duarte. Esta foi a forma como eu soube. O Duarte sempre foi um rapaz muito artístico. Ele queria ir para artes, mas o Gabi não o deixou, disse que ele se tinha de licenciar em gestão primeiro porque tinha de garantir o futuro. Foi por aqui que as discussões entre o Duarte e o Gabriel começaram. O Duarte acusava o pai de não o querer conhecer, de não compreender que ele tinha um querer, um objectivo. Que não podia fazer as coisas obrigado. Numa dessas inúmeras discussões, o Duarte descaiu-se do seu maior segredo. E disse ao pai que era homossexual. O Gabriel passou-se da cabeça, pôs o Duarte de castigo aos dezoito anos e proibiu-o de sair de casa. Proibiu-o de ser quem ele era. Disse que ele era a vergonha da nossa família. Passados uns dias de castigo o Duarte fugiu de casa, e o Gabriel deu sentimentalmente o filho como morto. Disse que se ele tinha saído nunca mais voltaria a entrar naquela casa. Passado um mês com a sua ausência, o Duarte apareceu em casa, com uma carta. Tinha feito um rastreio, e era seropositivo. O meu filho com SIDA! O mundo estava a ruir em cima de mim, só o queria apoiar. Se nós tivéssemos compreendido o meu filho ele nunca teria fugido de casa ora viver na rua e apanhar sida. Com o medo da opinião da sociedade, levamos o meu filho para a casa de Santarém. O Duarte começou a emagrecer. Cada vez tinha menos apetite e cada vez se sentia mais fraco. Estava sempre constipado e caía facilmente. Foram os dias mais dolorosos da minha vida. Ver o meu filho a ser corroído pela morte. Foi acordar todos dias durante dezoito meses a pensar quantas horas mais o Duarte viveria. O meu filho. O meu menino estava a morrer à minha frente e eu não podia fazer nada. Foi como se me arrancassem o meu coração lentamente. Passados dezoito meses o meu filho morreu. Fiquei só eu e o Gabriel. Nunca falamos sobre aquele assunto. Nunca. Mas o Gabriel, consumido pela culpa da morte do meu filho, arrasta nos para reuniões do luto gays. Faz doações a associações de luta contra a SIDA. Acha que assim vai redimir-se da culpa de ter morto o nosso filho. Não percebe que isso não o vai trazer de volta. Mete me nojo aquele cinismo. Mete me nojo a minha impotência. O meu filho pesava trinta quilos quando o enterrei. Não o soube a ajudar. Que espécie de mãe sou eu? 

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